Após vários meses, volto a alimentar o meu espaço de reflexão e compartilhamento na internet. Com a minha experiência clínica ao longo desses quase dois anos de pandemia, percebo com mais clareza a importância dos limites nos tempos de hoje.
Mas antes de falar de limites, é preciso falar de prioridades. Priorizar-se, atualmente, é confundido com egoísmo. Frequentemente, pacientes me perguntam se isso não é errado, se não vai levar ao fim do casamento ou da família. Essa concepção de que a vida em família é glorificada pelo sacrifício ganhou força como uma interpretação da missão de Jesus Cristo, o cordeiro de Deus, que se sacrificou para redimir a humanidade dos seus pecados. O cristão, apesar de consciente dos seus pecados, deve assumir sacrifícios com aqueles que ama, e isso inclui os desconhecidos. Isso tem início na família de origem, renova-se no casamento e se prolonga com a dedicação aos filhos. Se possível, deve ocorrer também na relação com a comunidade, com o outro de modo geral, por meio da caridade, por exemplo. Além da fé em Cristo como salvador, esse é o caminho à nossa redenção e que nos garantirá um lugar no paraíso.
Portanto, buscar um tempo para si mesmo ou falar de autocuidado tornou-se sinônimo de egoísmo para um sujeito que deve, antes de pensar nele, dedicar-se à esposa ou ao marido, aos filhos, aos pais, aos amigos, ao trabalho e ao outro. Evidentemente, a partir dessa concepção jamais encontrará tempo para si e, na busca por atender as demandas afetivas e sociais, precisará sempre ultrapassar seus limites. Estamos falando do ser humano do século XXI, que está a um passo do esgotamento, pressionado pela autoexploração em todos os aspectos sob o pretexto de que isso representa o sucesso, como bem descreve o filósofo Byung-Chul Han. Estamos a todo momento ameaçados pela sombra do fracasso, de se tornar um “loser” (perdedor). O erro tem sido cada vez menos tolerado.
Retomando a questão dos limites, para pensarmos em estabelecer limites, devemos partir do autoconhecimento. Cada um tem os seus limites, não se trata de uma receita de bolo e nenhum livro pode ensinar muito a esse respeito. Com certeza, a nossa experiência é útil, pois todos somos capazes de reconhecer onde e quando excedemos esses limites e qual o preço que pagamos por isso. E como alcançar esse autoconhecimento se não nos permitimos nos priorizar? Qual o tempo que dedicamos a nos conhecer e, assim, conhecer os nossos limites? Será que o aforismo grego “conhece-te a ti mesmo” não é uma narrativa condenada pela mentalidade consumista em que vivemos? O símbolo da satisfação ou felicidade está na sua capacidade de consumo e o seu limite é apenas um número: o limite do seu cartão. Estamos capturados pelo sonho capitalista inalcançável, uma vez que nossos sonhos tem uma obsolescência programada. Sempre se renovam antes de serem atingidos.
Os efeitos de se priorizar e estabelecer limites são claramente observados na clínica que pratico. Posso afirmar que nenhuma separação conjugal foi marcada por limites, porém o contrário é que constitui uma realidade. A falta de limites ou de individualidade se mostrou um fator importante para que várias relações chegassem ao fim durante a pandemia. Essa conclusão foi amplamente constatada e discutida na psicologia. Encontrar um espaço para si mesmo tem sido a solução e não o problema nesse contexto atual. É preciso mudar a narrativa e começar a observar quais outros fatores representam obstáculos para esse autodesenvolvimento. É preciso reconhecer relações em que existem controle, ansiedade, insegurança, codependência (seja pelo medo de abandono ou outra questão) e livrar de qualquer culpa a busca pelo caminho individual. Não há uma concorrência entre os caminhos individual e o familiar. O indivíduo saudável é o pilar da família.