Brilho eterno: recordar, repetir e elaborar a dois

Este texto contém spoilers.

Charles Kaufman demonstra em seus filmes compreender profundamente a linguagem mais profunda do psiquismo, o inconsciente, que foi primeiramente apresentada por Freud pelo fenômeno dos sonhos. Em um de seus filmes, Brilho eterno de uma mente sem lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004), Kaufman mergulha na mente de um personagem durante o sonho para capturar as lembranças de um relacionamento. Joel, interpretado por Jim Carrey, queria apagar as lembranças de Clementine, interpretada por Kate Winslet, da sua mente. Os funcionários da clínica procurada por Joel realizam esse procedimento enquanto ele dorme, porém ao entrar em contato com as recordações da ex-namorada, Joel se arrepende e, sem conseguir acordar, precisa criar recursos para mantê-la viva dentro de si.

Cena 1: A última recordação

Um recurso interessante explorado por Kaufman é a capacidade de Joel interagir criticamente com a recordação. A sua última lembrança é do momento em que conheceu Clementine. Ao mesmo tempo em que se lembra da cena, ele também fala da sua percepção sobre ela. Em determinado momento, ela diz: “Daqui a pouco vai acabar.” Joel responde: “Eu sei.” Clementine então pergunta: “E o que faremos?” Ele arremata: “Vamos aproveitar!” Aqui não se trata do diálogo do dia em que se conheceram, mas da aproximação da morte dela na mente dele. Resignado com a impossibilidade de retê-la, ele constrói uma metáfora derradeira que dá um novo sentido ao relacionamento do casal, que é a cena seguinte.

Cena 2: a casa de praia

Joel e Clemetine caminham pela praia à noite e encontram uma casa de praia abandonada, que começa a ruir. Eles entram e, enquanto Clementine explora a casa, Joel se mostra receoso. A casa segue desabando e ele avisa que vai embora. Ali começam a falar dos medos de Joel de se envolver com Clementine e de como gostariam de ter feito mais para a relação dar certo. Ele reconhece que fugiu dela, que se sentiu inseguro e, ao deixar a casa correndo, recebe um chamado de Clementine: “E se você ficasse dessa vez?” Ao responder que não lhe sobrou lembranças, ela insiste: “Volte e vamos inventar que tivemos uma despedida.” Ao se declarar para ela (“Eu te amo”), a mente de Joel se vale de um último recurso para mantê-la viva quando ela lhe diz: “Encontre-me em Montauk.” Depois dessa cena, Joel acorda sem lembrar da existência de Clementine, mas “inexplicavelmente” falta ao trabalho e pega um trem para Montauk, onde a encontra e a conhece pela segunda vez.

Cena 3: segunda chance

Após se conhecerem pela segunda vez, Joel e Clementine têm acesso às fitas que gravaram quando buscaram a clínica para apagar recordações, em que falam o que não gostam um no outro. Embora se sintam atraídos, Clementine fala que ficará entediada e que ele encontrará defeitos nela. Nesse momento, recai sobre ambos uma convicção de que a relação conjugal é imperfeita, insuficiente e incompleta. Somente é possível seguir na relação abrindo mão do mito das duas metades da laranja e assumindo o inexorável e permanente processo de construção-desconstrução-reconstrução. Ao mesmo tempo que é fundamental a aceitação do processo de mudança, também é necessária a aceitação de que algo não é passível de negociação e deverá ser tolerado. Por isso, Joel e Clementine terminam com risadas conformadas e esperançosas de “tudo bem”. Como diz Paulo Mendes Campos: “(…) nem toda sabedoria tem de ser profunda. Há uma sabedoria social ou de bolso.”

A crise é o lugar comum da relação conjugal e, ao final, o que se mostram decisivos são os recursos para a resolução de conflitos. A resiliência não é uma habilidade dada, mas arduamente construída como resultado de coragem e dedicação. Aos evitativos, aqui recomendo uma entrevista sobre o tema com o psicanalista Christian Dunker, não há outro caminho senão a eterna busca movida pela ilusão de um ideal de par perfeito.

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