Telas e hiperconectividade
É possível conhecer alguém pelos seus sintomas e o mesmo vale para a sociedade.
Entre os transtornos mais frequentes neste primeiro quarto do século XXI, podemos listar os transtornos de ansiedade e o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). A dificuldade de concentração já era uma questão preocupante nos anos anteriores à pandemia e piorou muito nos tempos de confinamento e estudo/trabalho remoto. Grande parte dessa dificuldade é atribuída às telas e à hiperconectividade, que proporcionam uma demanda contínua e sem descanso.
Uma forte evidência desse problema vem do Vale do Silício, onde os gurus digitais criam os filhos sem telas1. Em uma escola Waldorf dos Estados Unidos, onde estudam filhos de funcionários das big techs, os dispositivos eletrônicos são usados somente a partir do ensino médio. A própria Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que crianças menores de 5 anos não passem mais de uma hora por dia na frente das telas.
Remédios para impulsionar a performance
Com o crescimento de diagnósticos de TDAH, aumentam também as prescrições de medicações como as anfetaminas. Um estudo publicado no New England Journal of Medicine2, pacientes que usam anfetaminas podem ter o risco aumentado em duas vezes para a psicose em comparação com aqueles que receberam metilfenidatos. Além disso, as anfetaminas e os metilfenidatos oferecem outros riscos: podem levar a problemas circulatórios e o uso crônico a problemas cognitivos. O demesilato de lisdexanfetamina, mais conhecido pelo nome comercial Venvanse, ganhou grande popularidade e tem sido direcionado para melhorar o desempenho na escola e no trabalho3.
Como a competitividade tem sido cada vez mais antecipada na vida escolar, há uma preocupação maior com o uso frequente dessas medicações entre adolescentes. Provavelmente, o estudo remoto e a retomada ao presencial no fenômeno da pandemia favoreceram a falta de concentração e a prescrição desses remédios, como indica esse estudo com estudantes de medicina4.
Aceleração e exaustão
No entanto, a dificuldade de concentração e a busca por um desempenho melhor não são os únicos motivos para o crescimento nas vendas das anfetaminas. O professor Erikson Felipe Furtado, psiquiatra da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) alertou para o perigo de associar essas medicações com o álcool. Tal prática tem sido muito comum entre jovens como forma de lazer e essa associação pode elevar o risco de dependência5.
As anfetaminas também são largamente prescritas por endocrinologistas nos tratamentos de obesidade e emagrecimento em geral. O tema divide médicos e ainda está em discussão em várias entidades, porém não há dúvidas quanto à longa lista de efeitos colaterais. A própria questão dos sintomas alimentares revelam uma sociedade incapaz de descansar para comer e, tirando proveito desse cenário, a indústria de alimentos multiplica seu faturamento por meio de substâncias aditivas que causam prejuízos à saúde.
Byung-Chul Han abordou esse ritmo de vida em alguns dos seus livros, entre os quais destaco A sociedade do Cansaço e Vita contemplativa ou sobre a inatividade. Neste, o autor afirma que até mesmo o descanso está em função do trabalho, pois tem o objetivo recuperar o indivíduo para aumentar sua produtividade. Outro livro que questiona a qualidade de vida do mundo contemporâneo e os riscos dos processos acelerados é Alienação e aceleração: por uma teoria crítica da temporalidade tardo-moderna, de Hartmut Rosa.
Reunimos evidências de que, cada vez mais, a sociedade está produzindo, desde a infância, indivíduos desconcentrados, hiperconectados e exaustos. Em resposta, essa mesma sociedade lhes oferece estimulantes para impulsionar a performance. O que não se pode perder de vista é que os transtornos e remédios em questão são frutos de uma sociedade acelerada ou, em outras palavras, os sintomas mais frequentes e as soluções para eles descrevem a mentalidade da época em que vivemos.
