A narrativa como estratégia de resiliência

O diário de Anne Frank é um livro sobre as lembranças de uma adolescente alemã de origem judaica durante o Holocausto que impressionaram o mundo. Não exatamente por relatar fatos desse período da história, mas por ser uma narrativa infantojuvenil autêntica e lúcida a respeito de vários temas num contexto tão adverso.

Já se conhece o poder terapêutico da escrita em momentos de dor, algo atestado pela literatura e por grandes pensadores. Sem dúvida, trata-se de uma tarefa de elaboração ou, em outras palavras, uma forma de dar sentido a uma experiência que desperta angústia. Infelizmente, a tecnologia pouco a pouco fez desaparecer o hábito de escrever diário e nada substituiu essa atividade organizadora a contento.

No entanto, em algumas partes do mundo ainda existe uma forte tradição oral que sustenta o valor das narrativas. Essas histórias transmitidas de geração para geração são fundamentais como referência para auxiliar no enfrentamento de períodos difíceis, como este do coronavírus. Por exemplo, a narrativa de força de um sertanejo ao longo da seca pode servir de referência valorativa para que seu filho ou neto se reconheça suficientemente corajoso para enfrentar os desafios de uma metrópole.

O filme O náufrago explora bem esse ponto. O protagonista guarda a foto da esposa com o propósito de reencontrá-la e estabelece uma relação de amizade com uma bola de vôlei. Os sentidos construídos por meio desses símbolos proporcionam uma força de sobrevivência e superação. Para além do exemplo da ficção, esses símbolos são usados por crianças para superar a separação da mãe. O paninho ou urso de pelúcia, conhecido como objeto transicional na teoria de D. W. Winnicott, assume essa função simbólica que contribui para a estruturação do eu no mundo.

A dificuldade de reconhecer a dor e todo o esforço para evitá-la impede o curso natural dos processos subjetivos pelos quais se constrói os sentidos de uma experiência. Escrever ou falar abre caminho para a elaboração do sofrimento, inclusive o luto. A angústia pode ser liberada e convertida em atributos positivos através de símbolos. Vale lembrar que Freud fabulou e teorizou brilhantemente sobre esse processo em Totem e Tabu.