4 mitos do modelo tradicional de relação conjugal

Ao longo dos meus 25 anos de prática clínica com psicoterapia individual, conjugal e familiar, observei certos mitos sobre o que seria um relacionamento duradouro que foram repetidamente derrubados. Até hoje, as pessoas resistem agarradas a essas crenças, evitando assumir as responsabilidades contidas num ponto de vista de ordem mais prática ou realista.

É natural que quase toda terapia caminhe no sentido de rever valores e crenças e, nesse processo, dificilmente os mitos resistem de pé. Não acredito que se possa apressar o processo em questão, muito menos através desse tipo de texto, mas é possível haver um momento em que essas palavras sejam lembradas e possam ganhar sentido para quem atravessa uma crise.

Sobre a disposição de amar

Em primeiro lugar, um relacionamento não é apenas sobre ser amado(a), mas sobre amar. E isso requer disposição, interesse e trabalho. Por várias razões, que podem ser exploradas em outro texto, existem muitas pessoas que não estão dispostas a amar e, na maioria das vezes, isso não constitue uma característica ou um traço da personalidade da pessoa, e sim um momento da sua vida.

Por outro lado, também existe o contrário: pessoas que acreditam que amar é o suficiente na relação amorosa. Simplesmente ignoram o fato de não serem amados(as) e podem querer sustentar a relação com base numa entrega desproporcional, impondo à outra parte uma dívida de gratidão. Há ainda os que colonizam os afetos do(a) parceiro(a), de tal maneira a projetar suas próprias necessidades, objetificar e cercear a liberdade do outro(a).

Amar não é suficiente

Em geral, o casal que se ama luta arduamente para manter a relação valendo-se do sentimento, porém quando chegam ao consultório, essa crença já se encontra extremamente debilitada. Além disso, muitos casais chegam a se separar reconhecendo o amor que sentem um pelo outro.

Essa crença é um pilar do amor romântico, que defende um amor à prova de qualquer desgaste e autorregenerativo. Contudo, mesmo pessoais que verbalizam essa crença facilmente caem em contradição durante as crises. Reconhecer o peso de dificuldades de convivência, por exemplo, chega a ser algo constrangedor para elas e, com frequência, sentem-se incapazes de compartilhar o sofrimento com os mais próximos. O peso do fracasso familiar e social é o principal fator para a negação da crise.

É possível, e até provável, viver relações abusivas dentro de um sentimento recíproco de amor, pois essa narrativa permite várias concessões: que os limites sejam ultrapassados em nome de um bem maior. A ideia fixa de um destino em comum anula o respeito a si próprio(a), pois a própria individualidade é encarada como falta de amor e qualquer outra relação torna-se uma ameaça para a união do casal.

Abandonar esse mito significa aceitar que a relação amorosa deve se sustentar no trabalho (e isso muitas vezes está relacionado a um processo de psicoterapia). O amor, sem dúvida, é um elemento fundamental, contudo longe de ser o suficiente para manter uma relação. E não me refiro apenas à relação de casal, já que essa ideia de trabalho vale para as relações em família e de amizade também.

A salvação do outro é ilegítima

Existem casos, como a dependência química, em que frequentemente se relata a salvação do outro por um ente querido. Essa jornada geralmente vem com idas e vindas e é acompanhada de muito sofrimento e desgaste emocional. Embora ela pareça justificável em certa medida, não pode ser generalizada nem legitimada numa relação amorosa.

Permanecer na relação na condição de salvar o outro de uma doença física ou mental é a descrição de uma dinâmica comum na psicologia clínica. Ela permanece estabilizada pela doença colocando o casal numa posição assimétrica de poder. Um se sacrifica pelo outro com enorme dedicação em prova do amor, enquanto o outro contrai uma dívida eterna que o aprisiona indeterminadamente. Não lhe é permitido, sob a acusação de traição ou ingratidão, por qualquer motivo que seja, deixar o contrato conjugal.

É importante enfatizar que a salvação na saúde mental também é um processo de aquisição ou restauração da autonomia e, por isso, deve ser promovida pelo próprio sujeito. O outro pode contribuir para que o sujeito seja o agente da própria mudança, sendo até positivo que o faça, mas não ser o responsável por ela, até porque o próprio indivíduo em sofrimento definirá em qual direção pretende seguir. Portanto, a salvação do outro, nesse sentido, é ilegítima.

Modelo de conjugalidade e parceria idealizada

Um entendimento já consensual entre especialistas da área social é que modelo de conjugalidade não é mais um modelo, são diversos. O tradicional, que foi questionado no curso de várias gerações, não tem mais o mesmo espaço para os adolescente e jovens dos tempos de hoje. Para começar, os papéis conjugais não são mais vistos como um modelo de gêneros fixos ou aceito em suas funções predeterminadas: os homens como provedores, a serem servidos, sem encargos domésticos; e as mulheres como cuidadoras (da prole e da casa) e submissas.

Ainda que o modelo tradicional não sirva mais na sociedade com poucas amarras, deixou o seu legado. A idealização do(a) parceiro(a) ainda está ancorada nesses novos modelos, criando conflitos entre o que se busca e o que se tolera numa relação a dois. Essa idealização também é um traço opressor do amor romântico, que não humaniza nem limita o objeto do amor, apenas se presta a preencher perfeitamente as necessidades do amante sem que sejam considerados seu desejos, necessidades e faltas.

Trouxe apenas 4 mitos em crise nos tempos pós-modernos, mas tantos outros poderiam entrar nessa discussão. Todos eles estão relacionados e poderiam ser analisados por diversas perspectivas, inclusive sócio-histórica, uma vez que estão ligados às formas de poder estabelecidas por gerações no decorrer do tempo e do espaço.

O maior desafio para o casal está em co-construir um novo modelo, que seja dinâmico, justo (na perspectiva de cada um) e estável. Provavelmente, entraremos numa época em que não teremos mais o objetivo de elaborar modelos, dada a impossibilidade dessa missão. Pensaremos o desenvolvimento conjugal, dentro da perspectiva sistêmica, de uma forma mais ampla e orgânica, descrevendo, em permenente revisão, os padrões de interação com suas diversas variações.

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